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Publicado em: 13/11/2014 às 15:56

Giro na Ciência – Mitos Prejudicam o socorro de vítimas de animais peçonhentos

Por: Ascom/Fapesb

Emilly Sales tinha 16 anos e estava na cidade de Elisio Medrado no interior da Bahia, localizada há 223 km de Salvador no ano de 2011, quando foi picada por um escorpião enquanto dormia. Como na cidade, não havia um hospital que oferecia o soro antiescorpiônico, Emilly foi encaminhada para uma unidade de saúde da cidade de Amargosa (BA), referência no tratamento de soroterapia na região. Lá, havia banco de soros, e toda uma equipe capacitada para fazer o atendimento. “Quando cheguei até a unidade de saúde, o soro já não era mais indicado, devido ao tempo de locomoção para receber o atendimento”, conta Emilly que não sofreu qualquer sequela, após o acidente.

Assim como Emilly, muitas pessoas são vítimas de ataques de animais peçonhentos como serpentes, escorpiões e aranhas. No ano passado 14.313 acidentes foram registrados na Bahia pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), um sistema do Ministério da Saúde que controla e armazena todos os dados sobre acidentes com animais peçonhentos no país.

A maioria dos casos ocorre em matas, margens de rio e terrenos baldios em áreas urbanas, sendo comuns, acidentes que se agravam pela falta de informação e atendimento errado. De acordo com o SINAM, 59 % dos acidentes ocorrem no interior da Bahia. O número de acidentes com escorpiões é bem maior, quando comparados aos que ocorrem com serpentes no Brasil. Em 2013, o sistema registrou na Bahia 11.057 acidentes com escorpiões e 2.666 com cobras.

O Centro Antiveneno (CIAVE), ligado à Secretaria Estadual de Saúde da Bahia, é responsável pela assistência aos pacientes, diagnóstico e capacitação dos profissionais que realizam os atendimentos e tratamentos no estado. O CIAVE ainda coordena a distribuição de soros nas 300 unidades de saúde localizados nos 286 municípios da Bahia.

O CIAVE acompanha o número de casos a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Os municípios que mais registram ocorrências de acidentes com animais peçonhentos na Bahia são: Jequié, Feira de Santana, Caetité, Condeúba, e Ibiassucê. O farmacêutico e coordenador do programa de acidentes com animais peçonhentos e de apoio diagnóstico e terapêutico do CIAVE Jucelino Nery relata que o número de acidentes varia a partir de vários fatores. “Há locais onde o clima influencia, existem ainda questões como, a falta de saneamento e desmatamento que propiciam o aparecimento desses animais nas áreas urbanas. Em Jequié, por exemplo, os acidentes com escorpiões aumentaram em 38% em 2014, comparado com o primeiro semestre de 2013, devido aos casos de desmatamento na região e a construção da ferrovia oeste-leste,” alerta.

Mitos e verdades – O aposentado Francisco Tavares Cavalcanti, 71 anos, nascido e criado em um distrito do município de Itabuna, interior da Bahia, relata, que na década de 1970, época em que trabalhava em uma fazenda de cacau, viu vários amigos serem picados por cobras nas lavouras da região. Ele explica que no interior, as pessoas acreditavam em medidas ‘caseiras’ para tentar amenizar os efeitos do veneno das serpentes. “Era todo o tipo de coisa que faziam que dava até nojo. Passavam ovo, chupavam com a boca pra tentar tirar o veneno e até passavam querosene, mas na maioria das vezes não resolvia, e o sujeito tinha que ir pro hospital tomar o soro. Naquela época eu acreditava nessas coisas, mas hoje não”, conta o comerciante que, há 11 anos, vende frutas no Largo Dois de Julho, Centro de Salvador.

A bióloga e colaborada do Núcleo Regional de Ofiologia e Animais Peçonhentos (NOAP) da Universidade Federal Bahia, Yukari Mise explica que medidas absurdas são praticadas por muitas pessoas, na tentativa de anular os efeitos das picadas desses animais. “Já vimos medidas extremas como, abrirem a cobra, retirar o fígado e passar no local da picada. Isso é totalmente errado,” alerta a bióloga. “Existem também pessoas que benzem com plantas e fazem orações utilizando extrato de plantas”, diz a bióloga.

Ela ainda alerta sobre as famosas ‘garrafadas’, muito utilizadas em algumas cidades do interior, que é a mistura da aguardente de cana-de-açúcar com uma serpente morta no interior da garrafa. “Muitos bebem no intuito de ficar imune ao veneno, mas sabemos que essa mistura é prejudicial e desnecessária.”

O médico toxicologista e diretor do CIAVE Daniel Rebouças esclarece que é muito importante, observar o local da picada e fazer o possível para identificar o animal, porém, mais de 90% das pessoas não realiza a captura ou a identificação. Daniel Rebouças explica que os venenos das cobras cascavel e coral provocam nas vítimas, sintomas parecidos com os de pessoas alcoolizadas, o que se chama ‘cara de bêbado’, a pessoa fica com as pálpebras caídas, a fala embolada e tontura. “Também é possível identificar o tratamento correto, em alguns casos, através dos sintomas apresentados pela vítima”, esclarece o médico que ainda alerta: “É importante não dar qualquer tipo de medicação ou bebidas a essas pessoas, pois isso compromete a identificação do soro a ser aplicado, a partir da observação dos sintomas”.

Serpentes – A ideia de que as picadas de cobras representam um risco à saúde é também uma questão cultural, porém nem todas são venenosas, como explica o diretor do CIAVE, Daniel Rebouças. “Esse mito, acompanha a humanidade desde a corrente criacionista, que narra na bíblia, a história de Adão e Eva, a partir da civilização judaica cristã ocidental, que estigmatizou a serpente como um ser desprezível e perigoso”.

O fator cultural que se associa à questão das serpentes tem construído uma série de mitos e verdades, e levam as pessoas à realizarem ‘simpatias’ e procedimentos inadequados, para o tratamento das picadas.

Serpentes
A cobra que mais causa acidentes no Brasil e na Bahia é de Jararaca. Causa hemorragia e afeta a coagulação, modificando o número de plaquetas no sangue. De acordo com a bióloga Yukari, mais de 80% dos casos registrados com serpentes peçonhentas são de Jararaca.

Apesar do maior número de acidentes acontecerem com jararacas, elas são as cobras menos letais. A quantidade de óbitos comparada à quantidade de casos é mínima, 3 em cada 1000 casos. Contudo ela é serpente que mais deixa sequelas por causa do veneno de caráter degenerativo. A bióloga Yukari é um exemplo, ela conta que já foi picada, e imediatamente lavou o local com água e sabão, por causa das bactérias presentes na boca da cobra. Em seguida ela deixou a mão levantada, já que a picada foi no dedo, para evitar o inchaço, sinal característico das picadas de jararaca, o inchaço é indicativo de gravidade. Foi nessa ocasião que ela descobriu que era alérgica ao soro, explica “Muitas pessoas são alérgicas ao soro, mas mesmo assim ele é a única medida completa e eficiente, por isso, deve ser ministrado ao lado de antialérgicos e corticoides.”

Cascavel – A cobra mais letal é a cascavel, ela possui um veneno mais perigoso que a jararaca. Em 2013, 94 acidentes foram registrados na Bahia. Em quase 2% dos casos, as pessoas picadas morrem mesmo com o uso do soro, segundo o SINAN.

Coral – Seu veneno é neurotóxico (paralisante), afeta o funcionamento nervoso e provoca morte por insuficiência respiratória. A coral, tem o veneno mais potente entre as serpentes brasileiras. Ela possui cores chamativas, e por isso é difícil não identificá-la.

Falsa coral – Possui cores chamativas e veneno, mas de toxicidade baixa e não perigosa para seres humanos, a mordida provoca apenas coceira. É muito parecida com a Coral verdadeira, a diferença é que algumas não possuem listras na parte inferior, tem a barriga branca, mas só algumas tem essas características.

Como identificar uma serpente venenosa? A forma mais importante para identificar uma cobra perigosa é a fosseta loreal, uma cavidade entre a narina e o olho que em algumas cidades as pessoas chamam de ‘cobra de quatro ventas’. “A fosseta é a estrutura que as cobras usam para perceber o calor e produzir a imagem térmica. Das cobras mais perigosas – Cascavel, Jararaca, Surucucu e Coral – apenas a coral não possui a fosseta, mas ela é facilmente identificada pelas cores chamativas. A cascavel além da fosseta, possui o chocalho na cauda que facilita o reconhecimento”, explica a bióloga Yukari Mise.

Soroterapia – O diretor do CIAVE Daniel Rebouças explica que toda a produção de soros no Brasil é feita em três laboratórios principais: Instituto Ezequiel Dias, Instituto Butantan e Vital Brasil. Na Bahia existem municípios que concentram bancos de soros para atender às regiões próximas, como vilarejos e distritos.

A utilização do soro deve ser feita em doses e casos necessários. “No caso das picadas de escorpiões, por exemplo, o tratamento não requer soro para os adultos. Apenas crianças menores de 7 anos ou adultos e idosos que apresentem manifestações clínicas que justifiquem o uso do soro como hipertensão e diabetes, por exemplo,” esclarece o toxicologista. Quanto às serpentes e aranhas peçonhentas, o soro é sempre utilizado.

Como é produzido o soro? Os soros são medicamentos inócuos, ou seja, não são nocivos. O diretor do CIAVE Daniel Rebouças explica que o soro é produzido a partir da proteína do cavalo, o veneno é inoculado no cavalo que por ser um animal de grande porte, resiste à toxina, ele faz isso fabricando anticorpos que são filtrados para a partir daí, o soro ser produzido. “Por ser uma substância vinda de outro animal, pode provocar reação alérgica, por isso é importante usar o soro mais específico possível e a quantidade correta” destaca o médico.

A única coisa completa é o soro antiveneno específico, conta a bióloga Yukari Mise, “existem substâncias como alguns extratos de plantas que cumprem funções isoladas como analgésico ou anticoagulante, no entanto, o soro é o único que trata todos os sintomas gerados pela picada.” Ela esclarece que a maioria das pessoas, são alérgicas ao soro, por isso ele é sempre ministrado associado a antialérgicos, corticoides e antitetânica.

“Ninguém morre de imediato ao ser picado por uma serpente, os sintomas levam uma média de três horas para se manifestarem e isso depende de vários fatores, como idade ou estado de saúde da vítima” esclarece Jucelino Nery. Os casos de óbito geralmente acontecem quando as pessoas não procuram serviço médico ou procuram tardiamente. O primeiro sintoma que indica uma gravidade no estado do paciente é insuficiência renal. Os soros variam pelo gênero da serpente. Ele alerta, “O recomendado é usar o soro o quanto antes. Até 12h é recomendado, mas até 24h ele ainda fará efeito.”

Como identificar outros animais pelas suas características?

Escorpiões – Todos os escorpiões são venenosos (peçonhentos), mas nem todos são perigosos para as pessoas. O soro antiescorpiônico é universal pois as toxinas são parecidas. Os escorpiões que mais se destacam na Bahia em número de acidentes são o escorpião-amarelo e escorpião-listrado. O escorpião listrado registra alta incidência de acidentes no Nordeste de Amaralina em Salvador. Sua picada provoca muita dor e oferece um risco maior para crianças que ao serem picadas, podem morrer por edema pulmonar ou choque neurogênico, quando o cérebro não suporta tanta dor.

Aranhas – São três, as aranhas peçonhentas perigosas. Viúva Negra e Armadeira são as mais recorrentes na Bahia, já a aranha Marrom tem maior incidência no sul do país e na Bahia, ela aparece na região da Chapada, em algumas cavernas, onde o ambiente é mais frio. A aranha Marrom é a mais letal. Sua a picada não dói e depois de um tempo, provoca insuficiência renal. A Viúva Negra aparece em maior quantidade no Rio de Janeiro, é uma aranha dócil, o perigo está quando é comprimida, então ela morde para se defender e destila seu veneno. “A Armadeira é a mais agressiva, porém é a menos letal”, esclarece a bióloga Yukari.

Quanto à Caranguejeira, que muitos pensam ser perigosa, não oferece grande risco. É pouco peçonhenta, a picada dói devido ao seu tamanho. Os pelos podem causar apenas urticária, irritação que provoca coceira. Muitas aranhas produzem veneno que não oferecem nenhum risco para seres humanos, conta Jucelino Nery do CIAVE. “È preciso identificar antes de iniciar o tratamento com o soro”.

Caso da Viúva negra – Quando o programa de soroterapia no Brasil estava no início, a partir de 1986, o soro da Viúva Negra (soro antilatrodectus) foi trazido da Argentina. Um estoque doado pelo Instituto Malbran, já que no Brasil ele não era produzido. No início dos anos 2000, o Instituto Vital Brazil começou a fabricar o soro, conta o toxicologista Daniel Rebouças, “um lote foi enviado para o CIAVE aqui na Bahia, um soro muito bom, mas houve um problema, o Ministério da Saúde considerou esse novo soro inadequado e impediu sua distribuição, mesmo o soro sendo testado comprovando sua eficiência e segurança, feito da mesma maneira que os outros soros”, afirma. O impasse permanece até hoje, não há distribuição do soro da Viúva Negra e ele é muito caro para ser importado de laboratórios de outros países. Então quando alguma pessoa é picada pela viúva negra, o tratamento é de suporte aos dados vitais do paciente, com analgésicos e glicose, explica Jucelino Nery. “Com o soro, o tratamento levaria apenas algumas horas e com pouca dor. Sem o soro, o tratamento leva de 1 a 2 dias, com a dor persistindo mais tempo.”

Dados para destaque:

2013 – Aconteceram 14.313 acidentes com animais peçonhentos na Bahia, serpentes, escorpiões e aranhas.
59 % dos acidentes com animais peçonhentos ocorrem no interior da Bahia.

O número de acidentes com escorpiões é bem maior, 11.057.

Acidentes com serpentes somam 2.666

Acidentes com aranhas foi o menor, 590 acidentes.

2014 – primeiro semestre – 8.494 casos de acidentes com animais peçonhentos, sendo que 6.124 deles foram acidentes com escorpiões.

No Brasil, 40% dos acidentes com cobras são provocados por serpentes não peçonhentas, segundo o SINAM.

Os municípios que mais registram ocorrências de acidentes com animais peçonhentos na Bahia são:
Jequié – 3.078
Feira de Santana – 2.008
Caetité – 1.764
Condeúba – 1.606
Ibiassucê – 1.528

FONTE:SINAN/CIAVE

O que fazer quando for picado por animal peçonhento? Lavar o local com água e sabão. Imobilizar o membro atingido, ao transportar a pessoa até o local de atendimento médico. Colocar o membro ferido em uma posição mais elevada. Conduzir a pessoa rapidamente para o atendimento médico. Se capturar o animal, levá-lo junto para que o médico identifique o procedimento e o soro indicado para o tratamento.

O que não fazer: Nunca corte ou fure a pele no local onde recebeu a picada, isso só aumenta o risco de infecção. Não faça torniquete ou fure a região mordida. A boca da serpente é rica em bactérias que podem causar infecções A jararaca, por exemplo, possui um veneno que destrói o tecido, o risco de ocorrer necrose no local picado é muito grande. Não coloque nada no local, pessoas costumam acreditar que alho, fumo, café, querosene e outras coisas do gênero podem ajudar. Isso não é verdade. Nunca tente sugar o veneno, a presa do animal é grande e a inoculação é rápida.

Por: Laís Matos – Agência de Notícias em Ciência, Tecnologia e Inovação FACOM/UFBA

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